Dientes de Navarino 2024 - Paulo Miranda

Logo do site paulomiranda.com/dientes-de-navarinoLogo do site paulomiranda.com/dientes-de-navarino
»Os relatos e as fotos

Laguna Martillo » Laguna de los Guanacos

4º dia - 24/01/2024

Enfim, chegou o dia do Paso Virginia com sua famosa descida da face norte. Porém, não tínhamos a menor ideia de que a subida também era uma atração em si mesma. Mas… não nos precipitemos. Ainda tinha muito chão até lá.

Como sempre, acordávamos bem cedo, tomávamos o café e saíamos antes dos chilenos. A trilha percorre todo o lado direito (leste) da Laguna Martillo até o seu ponto de deságue, na extremidade norte. A partir desse ponto e por um bom pedaço de tempo, o Cerro Clem(1) é onipresente no horizonte a oeste. A trilha continua pela margem direita do rio e, gradualmente,  se afasta do curso d'água rumo à encosta arborizada que fica aos pés do Paso Virginia. Quer dizer, não exatamente aos pés…

O trecho que vai da Laguna Martillo até uma laguna, cujo nome não sei e que fica antes da dita encosta arborizada, é a única parte complicada em termos de navegação de toda a Dientes. É uma longa planície com muitos trechos lamacentos e poucos marcos de sinalização. Umas tantas vezes, a trilha sumia sob os nossos pés, o que nos forçava a parar e ver para onde ela tinha ido. Nesse trecho, o GPS é essencial: o Luchesi ia na frente procurando a trilha, e eu atrás conferindo o caminho na traquitana tecnológica. Nada preocupante, mas atenção:

o fato da Dientes ser, na sua maior parte, sinalizada com hitos e tótens não elimina uma questão essencial: muitas dessas marcações - principalmente os tótens, a maioria baixo e no nível do chão - podem sumir no caso de uma nevasca, mesmo no verão. Nesse caso, impõe-se a necessidade de navegação (por referência, mapa e bússola, GPS) e o cuidado ao caminhar. 

Paramos um pouco pra descansar e fomos ultrapassados pelos chilenos, voltando a encontrá-los no início do bosque, através do qual a trilha sobe em ziguezague. A partir dali, fomos juntos até o final do dia. Logo depois do bosque, já no reino das pedras soltas, a trilha sobe em direção a uma cascata junto a uma placa de gelo, placa esta que é vista desde lá de longe. É normal achar que o Paso tá ali, ao alcance das mãos, no máximo um pouco além. Assim como todos os anteriores. Ao chegar no topo da cascata e da placa de gelo, depara-se com um enorme e amplo e largo platô à sua frente com uma crista lá longe. Tá… é lá o passo. E percorremos esse segundo platô felizes da vida… pra chegarmos naquela crista e ver outro enorme e amplo e largo platô à sua frente com uma crista lá longe. Déjà vu?

E foram esses enormes e amplos e largos platôs a percorrer para se alcançar o Paso Virginia que fez com que eu me apaixonasse por ele. De todos os passos já cruzados na vida, nunca tinha percorrido um assim. A noção de tempo se deve ao espaço percorrido: antes, estava lá; agora, aqui. Na subida da face oeste do Virginia, a quase horizontalidade da encosta e homegeneidade da paisagem mais o fato de que a única referência de “aqui” e “lá” são pequenos tótens de pedra, muitos muito pouco visíveis, dão a sensação de ausência de tempo. Se você não olhar pros tótens, tem a sensação de não sair do lugar. Que ótimo lugar para divagações.

Mas… por mais que se divague sobre o tempo e o espaço, há um momento em que você chega ao Paso Virginia, o ponto mais alto de toda a trilha, a 844 metros de altitude, e dá de cara com a crua realidade da descida. Então, toda a divagação anterior se transforma em quimera. É um passo de opostos, yin-yang: de um lado, uma subida “quilométrica” e praticamente plana; do outro, quase uma queda livre. O desnível até a Laguna de los Guanacos é de “apenas” 289 metros verticais, percorridos numa distância de uns 400 metros; isso porque no meio da encosta há um trecho quase horizontal, de uns 150 metros. Em detalhes, a descida tem três lances: o primeiro, o mais curto e extremamente íngreme e escorregadio; o segundo, bem mais tranquilo, quase horizontal; e o terceiro, menos íngreme e não tão escorregadio como o primeiro, mas que, ainda assim requer cuidado.

Uma coisa é certa: a descida do Paso Virginia é bem íngreme. Há que se ter muito cuidado e atenção! Não quero nem imaginar como seria descer aquela encosta em meio aos ventos dos confins do mundo. Deixo isso para a publicação Ruta Patrimonial nº1 - Dientes de Navarino - Circuito Cabo de Hornos (4ª edição, 2014):

Tenga mucho cuidado sobre el paso de no avanzar hacia el borde y menos continuar camino sobre la nieve para tener una buena vista sobre la laguna Los Guanacos y el canal Beagle. Esta es una inestable y peligrosa cornisa, que cae bruscamente 300 m más abajo. Para continuar deberá bajar por el faldeo que cruza una fuerte pendiente, siga cuidadosamente a la derecha, identificando la huella. Así también debe cuidarse de las violentas e imprevisibles ráfagas y remolinos de viento, que pueden desestabilizarlo y hacerlo rodar pendiente abajo.

Mas, antes de começar a descer, um momento para admirar a vista com a laguna aos nossos pés, quase a prumo, e o tão esperado Canal de Beagle, ainda a um dia de caminhada. Que visão maravilhosa e inesquecível!! O Paso Virginia faz juz a uma frase que escrevi nos relatos sobre a minha experiência em percorrer a Trilha John Muir, nos EUA, há exatos 22 anos:

Numa trilha como a JMT, um passo toma o lugar do cume de uma montanha, no sentido de ser esse o lugar em que mais se deseja estar. Mais do que completar toda a trilha, é a travessia de um passo que acaba justificando toda a caminhada

Vencido o precipício, o que se segue é um passeio no parque: a trilha contorna a Laguna de los Guanacos pela sua margem esquerda e acompanha o rio de deságue. Poucos metros abaixo, cruzamos o mesmo e acampamos em meio às árvores. No fim… nada de novo nos confins do mundo.
 

  1. Homenagem a Clem Lindenmayer, morto em 2007 nas montanhas Gonga Shan, na província de Sichuan, sudoeste da China. O corpo foi achado nas encostas do Pico Riwuqie, depois de três meses desaparecido. A homenagem se deve ao fato de Clem Lindenmayer ter idealizado o circuito Dientes de Navarino e publicado no guia Trekking in the Patagonian Andes (ed. Lonely Planet).

Copyright © Paulo Miranda - 2024