Puerto Williams » Laguna del Salto
1º dia - 21/01/2024
No dia 21 de janeiro, em torno das 7 da manhã, eu e o Alexandre Luchesi já estávamos no carro a caminho da represa no rio Róbalo, que marca o início da Dientes de Navarino. Era uma manhã nublada com prognósticos nada animadores. Pelo jeito, os dias chuvosos continuariam: a dona da pousada em que ficamos dissera que até aquele momento não havia tido verão lá no fim do mundo. Não só isso: não havia muito, uma pessoa que fazia a Dientes ficou "presa" duas noites às margens de uma laguna qualquer antes do Paso Virginia por conta de uma nevasca... em pleno verão. Nos Carabineros, onde todos aqueles que vão fazer a Dientes devem se registrar, um francês, que chegou pra dar baixa do nome depois de percorrer a trilha, contou os perrengues pelos quais passou em meio a chuvas e barros e charcos.
Luchesi, parceiro de montanhismo e escalada de longa data e recentemente de bicicleta, me perguntou, no meio do ano passado, se eu não queria fazer a Dientes. Pra quê, né?! Eu tava quieto no meu canto, e o cara me vem com golpe baixo. Há muito que eu sonhava com essa trilha, mas a falta de parceria e outros desvios da vida foram adiando a esperança de conhecê-la; até que finalmente ele, o sonho, se perdeu em algum desvão escondido da memória. Mas ele não deixou de existir, ainda estava lá, em algum lugar da memória, só não sabia onde(1). Porém, vejam como um simples convite tem o poder de mudar tudo, de provocar um terremoto cerebral e revirar todos os seus desvãos, de fazer girar a roda da fortuna.
Soube da existência da Dientes de Navarino lá pelos anos 1990, quando comprei o guia Trekking in the Patagonian Andes, do australiano Clem Lindenmayer e publicado pela Lonely Planet. Foi amor à primeira vista já na primeira leitura, tanto pelo local - nos cafundós do mundo - como pela dificuldade - não há via de escape: se der problema, ou você volta, ou continua. Ainda nos Carabineros, fomos indagados se tínhamos seguro para resgate por helicóptero. Numa conversão rápida, o valor do resgate, informado pelo policial de plantão, pra quem não pensou nesse detalhe insignificante ficava em torno de módicos 40 mil reais. Algumas das informações exigidas pelo policial eram meio assustadoras: tínhamos que escrever as cores da barraca, do casaco, da mochila e da capa da mochila para o caso de precisarmos ser localizados lá de cima.
De volta à represa e após os últimos ajustes, iniciamos o primeiro dos cinco dias em que normalmente as pessoas levam para completar a Dientes(2). A trilha sobe em ziguezague pela encosta norte do Cerro Bandera (596 metros de altitude) em meio ao bosque com uma e outra janela com vistas para o Canal de Beagle e, na outra margem, a Argentina. Poucos metros antes do cume, quando as árvores ficam pra trás, tinha-se a impressão de que o céu ia desabar. O que acabou acontecendo quando chegamos à bandeira chilena que justifica o nome do Cerro. E ela, a chuva, chegou com tudo o que tinha direito, isto é, muito vento e granizo. O famoso clima dos confins do mundo nos recebia com toda a pompa e circunstância.
Depois de percorrer um longo e rochoso platô desde o Cerro Bandera, a trilha atravessa um riacho e vai gradualmente para a direita em direção à extensa e exposta encosta oeste do Cumbre Bandera(3), ao longo da qual - quase um quilômetro e meio de distância - a variação de altitude é insignificante. Tem-se a impressão de caminhar o tempo inteiro na mesma cota, até que se chega no hito 9(4), a 610 metros de altitude, em que a trilha quebra pra direita e desce, direttissima, um íngreme desnível de uns 120 metros verticais em direção à Laguna del Salto. Detalhe: em meio a um mar de pedras soltas. Mais divertido que isso, só a descida do Paso Virginia.
Depois de 5 horas de caminhada, chegamos na Laguna del Salto (492 metros de altitude). Montamos as barracas na margem sul, próximo à queda d’água que dá nome à laguna, e fizemos a comida já sob um surpreendente céu azul. Não choveria mais durante toda a caminhada e, considerando os relatos que ouvimos em Puerto Williams, podemos dizer que o tempo firme que pegamos ao longo daqueles cinco dias não era nem mais uma janela, mas uma varanda de bom tempo.(5)
Aos poucos, foram chegando outros companheiros de acampamento: três chilenos, com quem teríamos o prazer de compartilhar os acampamentos até o final, um casal de franceses, que iria, primeiro, até o Lago Windhound, para depois retomar a Dientes, e um casal belga.
- Não sou um navegador antigo, mas tenho pra mim uma frase gloriosa de Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa), que inicia o poema Tabacaria: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
- Há quem faz em 4 dias, até em 3. Tudo depende da disposição.
- Não confundir com o Cerro Bandera, que já ficou pra trás.
- Pequenas estacas de madeira com uma placa metálica a indicar, com uma numeração, um determinado ponto importante da trilha. A maioria dessas estacas ainda mantém, quando ainda tem, a numeração antiga, que reinicia a cada trecho. A atual, como se pode ver no folheto Ruta Patrimonial nº 1 - Dientes de Navarino - Circuito Cabo de Hornos (4ª edição, 2014), é progressiva, independente dos trechos. Apesar disso, os pontos de marcação são os mesmos.
- O que ouvimos sobre o tempo na Isla Navarino parece com o relato Além do fim do mundo, de Aldem Bourscheit, publicado no site O Eco.