Trilha John Muir - Paulo Miranda

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Enfim o cume... 3 anos depois!

17.09.2002

Uma noite junto às amenidades da civilização não faz mal nenhum. O problema é que tudo isso tem um custo, que no caso do VVR, devido ao estado de quase isolamento nas montanhas, não é nada desprezível. A primeira noite é cortesia da casa, mas o que você deixa por qualquer serviço prestado, compensa e muito esse "prejuízo". E eles sabem muito bem que uma pessoa, depois de dias no mato, encontra-se totalmente desprovida de qualquer senso de realidade, não pensando duas vezes em pagar quase 10 dólares por um sanduíche com batatas fritas; além de ser humanamente impossível resistir a uma boa e cara sobremesa como bolo de maçã com sorvete de creme após cada refeição. Fora as cervejas extras. Pensando bem, tudo se justifica. Pru’scambau qualquer medida regulatória e VIVA os prazeres da mesa!!

Dentre as pessoas que encontramos na nossa chegada ao resort estavam o Matthew (ou Matt), vizinho de bairro e amigo da Jana, e que acabaria fazendo dupla comigo até o final da trilha, e a dupla Eric e James. Tendo pernoitado em Tully Hole, esses dois contaram da noite extremamente desconfortável que tiveram por causa do frio, confirmando nossas suspeitas e quão certa foi a nossa decisão de não passar a noite lá no "buraco". Todos partiríamos no dia seguinte, 23/08, sendo que a dupla pegaria o ferry da manhã, e nós, incluindo o Matt, voltaríamos à trilha à tarde: no meu caso, com o estômago plenamente satisfeito depois daquela orgia alimentar, com o corpo bem mais leve, livre da sujeira acumulada nos 8 primeiros dias de caminhada e com o bear-can reabastecido para mais 8 dias. Consegui colocar isso tudo dentro daquela lata minúscula, que eu já chamava de bear-fucking can. O pessoal dizia que não fazia muito sentido o fucking em mesóclise. Mas tudo bem: nada como um estrangeiro para abrir novas possibilidades de uso de uma língua.

À nossa espera estava a interminável subida da Bear Ridge (Crista do Urso). Cruzando o Riacho Mono (Mono Creek) numa ponte imune a enxurradas do degelo, a trilha sobe uma encosta de uns 660 metros de altura (quase dois Pães-de-Açúcar) através dos eternos zig-zags. Umas três horas mais tarde e uns 8 km depois, estávamos todos jogando conversa fora em torno de uma agradável fogueira, no outro lado da Bear Ridge. Era, na realidade, a confraternização de despedida, pois a Jana, a Laurie e o Greg iriam caminhar num ritmo mais lento a partir do dia seguinte (24/08). E o Matt, que eu imaginava que iria acompanhá-los, me alcançaria um pouco antes da travessia do Passo Selden. Esse cara era um "animal", no sentido de resistência: o ritmo constante e forte de caminhar, independente da altitude, se tornava ainda mais impressionante quando se levava em consideração que ele carregava dois bear-cans, uma barraca pesada para duas pessoas e um monte de equipamento: o oposto da minha mochila, que de pesado só tinha um bear-fucking can. E a despeito do peso da mochila, ele estava sempre à minha frente, sempre chegando nos Passos com uma boa meia hora de antecedência. Mas a vontade de partilhar a viagem falava mais alto, e assim, formamos uma dupla que duraria até um dia depois de terminar a trilha, quando pernoitamos na cidade de Mojave para, no dia seguinte, cada um pegar o ônibus para sua respectiva cidade.

Voltando à trilha: logo após o encontro, às margens do Lago Marie, alcançamos o fácil Passo Selden (3.322 m). Batidas as fotos de praxe e feitas as congratulações, começamos a descer em direção ao afluente sul do Rio San Joaquin (South Fork San Joaquin River). A idéia era aproveitar a descida para caminharmos o máximo possível, pois a seguir viria o Passo Muir, o primeiro grande passo de toda a trilha, localizado a mais de 3.600 metros de altitude. Com essa idéia em mente, pegamos a longa, íngreme e rochosa descida da encosta sul do Passo Selden, indo acampar – 28,5 km depois do último acampamento – às margens do Riacho Piute (Piute Creek), "portão" de entrada do impressionante Parque Nacional Kings Canyon. O nome desse Parque não é em vão, possuindo magníficas paisagens de montanhas dentro de seus limites. Na chegada ao Riacho Piute, encontramos três pessoas que já estavam às voltas com a atividade de pendurar a comida num galho de árvore. Bom... eu e Matt chegamos, armamos nossas respectivas barracas, cozinhamos e comemos nosso jantar e só quando começamos a arrumar a "cozinha", mais de uma hora e meia depois, é que os caras conseguiram pendurar a comida de modo satisfatório. No dia seguinte, a comida ainda estava lá, mas o tempo necessário para pendurá-la é uma prova de como o bear-can é muito mais fácil e prático, apesar do peso. Além de ser mais seguro também.

O dia seguinte seria longo, não no sentido de quilometragem, mas no sentido do caminho em si. Seriam 19 km de subida constante, até chegarmos ao Lago Evolution, onde paramos para dormir. Para chegar a esse lago, a trilha percorre um profundo canyon por onde corre o afluente sul do Rio San Joaquin para, em seguida subir a íngreme parede que leva ao Vale Evolution. Por esse vale desce, em direção ao Rio San Joaquin, o encachoeirado Riacho Evolution (Evolution Creek), que nasce a partir dos lagos alpinos que formam a Bacia Evolution (Evolution Basin), um pouco antes do Passo Muir. Como é possível perceber pelos nomes, toda essa região é dedicada às pessoas envolvidas com a teoria da evolução das espécies; tendo, inclusive, uma montanha com o nome do mais importante de todos eles: Monte Darwin. E foi aos pés desse monte, que mais parece uma longa crista, às margens do Lago Evolution e bem acima das árvores, que acampamos. Dormir entre as árvores pode dar uma sensação de segurança, mas é nas altas regiões, num ambiente extremo e inóspito, que eu tinha o maior prazer em pernoitar. Nada como observar bem de perto as montanhas sendo encobertas pelo rubro crepúsculo do anoitecer; de sentir sem ver a silenciosa presença desses enormes seres ao seu lado durante a noite, para, enfim, admirar o sol despertando-as na manhã seguinte. Nesse instante, seus raios atingem primeiro os cumes, e em seguida, começam a descer pelas encostas, trazendo o calor vital à parte desse ambiente ainda não desperto. No dia-a-dia, protegidos (?) em nossas cidades e com a única preocupação de ganhar o pão de cada dia, dificilmente temos tempo para pensamentos supérfluos, como a importância da luz do sol além do fato de ser um grande e gratuito bronzeador. Acho que só mesmo quem já experimentou a sensação de acordar bem cedo num frio ambiente e observar, trêmulo e pacientemente, a luz do sol descer a encosta até nos tocar, nos trazendo de volta o calor essencial à vida, é capaz de perder tempo com esses pensamentos inúteis.

Deixando essas filosofias de lado, pois tínhamos mais um dia de caminhada pela frente (seja bem-vinda, rotina nossa de cada dia), foi só o sol nos aquecer para, com a barriga cheia de um insosso café-da-manhã (granola desidratada – freeze-dried food – comprada em loja de montanhismo. É impressionante o cinismo dos fabricantes desse tipo de comida ao dizerem que elas são nutritivas. Na realidade, isso e nada são a mesma coisa!), partirmos em direção ao Passo Muir, a poucos quilômetros de distância. A trilha vai cruzando um ambiente fantasticamente belo e totalmente desprovido de qualquer tipo de vida, exceto umas poucas gramíneas e um ou outro caminhante que por ali passa. A paisagem é lunar, e o céu, de um azul cristalino típico das altas altitudes, é refletido na água acumulada nos pequenos lagos formados pelo degelo da neve do inverno. São esses lagos, conhecidos como tarn, que vão dar origem, com seus minúsculos córregos de drenagem (algumas vezes, subterrâneos) aos caudalosos rios que cruzamos ou acompanhamos nos vales inferiores. É interessante observar que esses mesmos rios surgem de lagos que são, em pleno verão, alimentados por uma placa ou outra de gelo incrustada nas encostas das montanhas que os cercam, como um anfiteatro – formação conhecida como circo, uma espécie de concha acústica de cabeça para baixo. À medida que admirava esse ambiente, ia percorrendo um caminho rochoso que, após contornar o Lago Wanda (em homenagem a uma das filhas de John Muir), começou a subir a encosta final. Daqui de baixo, já conseguia visualizar o topo do abrigo que existe no Passo Muir, construído para proteger quem é pego no meio daquela região durante uma tempestade de raios.

À medida que ia subindo a encosta, a emoção começou a falar mais alto. Pois era justamente aquele passo – o Passo Muir (3.644 m) – o lugar da JMT que eu mais queria estar. Todos os outros lugares eram importantes, pois afinal é o conjunto de todos eles que formam a trilha que eu me propus percorrer. Mas esse passo significava algo diferente para mim. O quê, exatamente, não sei. É o nome? Pode ser, mas não é só isso. Só sei que desde a primeira vez que eu vi uma foto desse abrigo no alto daquelas montanhas, eu senti que era ali que eu mais queria estar só por estar. No momento em que cheguei ao lado da casa, exatamente ao meio-dia, a emoção já era incontrolável. Simplesmente sentei na frente da casa e deixei as lágrimas descerem livremente. Não queria, e nem tinha porquê, encontrar qualquer razão para isso... Simplesmente fiquei ali, sentado, com minhas emoções. Alguns minutos depois, já mais tranqüilo, entro no abrigo e encontro o Matt escrevendo no Livro de Passo. Eu disse, algumas linhas atrás, que na JMT, um passo toma o lugar do cume no sentido de ser o ponto que mais se deseja alcançar nessa trilha. E como temos o enorme prazer de colocar nossas impressões no Livro de Cume, assim também o é em relação ao Livro do Passo.

Mas a trilha continua e, como sempre, tínhamos uma longa e rochosa descida pela frente. Depois de quase uma hora naquele belo lugar, com as nossas impressões devidamente registradas no Livro e o estômago saciado, partimos em direção ao Lago Helen (outra filha de John Muir) que dá origem a um dos afluentes do Rio Kings (Middle Fork Kings River), outro importante rio da Sierra Nevada. A nossa intenção era dormir o mais próximo possível do Paso Mather, um dos mais exigentes de toda a trilha. A diferença vertical em metros do ponto mais baixo antes dele até o passo propriamente dito são uns 1.240 metros, a serem percorridos em apenas 16,4 km. No caminho, passamos pela bifurcação com a Trilha do Passo Bishop (Bishop Pass Trail) sem imaginar que, algumas horas mais tarde, estaríamos acampados ali. Uns cinco quilômetros vale abaixo, chegamos à confluência do Rio Kings com o Riacho Palisade (Palisade Creek), através do qual pretendíamos continuar a caminhada por mais uns 5 quilômetros rio acima, até o Deer Meadow. Foi quando nós vimos aquela massa de fumaça cinza-escuro encobrindo todo o vale: nada mais, nada menos do que um enorme incêndio. Sentamos para jantar e discutir a situação. Seria loucura entrar no vale, considerando que o fogo se espalha com muita facilidade naquele ambiente extremamente seco. Aquilo lá poderia virar uma armadilha. Então, decidimos voltar à bifurcação com a Trilha do Passo Bishop, onde existe uma cabana de Guarda-Parque. Que encontramos fechada, sem ninguém para explicar o que estava acontecendo. Acampados ali, foi possível sentir o cheiro de fumaça durante toda a noite. E as estrelas, ainda visíveis ao anoitecer, já estavam ocultas pela fumaça que avançava pelo vale trazida pelo vento.

Na manhã seguinte, eram as montanhas que cercam o vale que estavam encobertas pela fumaça. Ainda sem ninguém para dar alguma explicação, decidimos sair da trilha através do Passo Bishop e retornar mais à frente, através do Passo Kearsarge. Não foi uma decisão muito fácil. Afinal, isso representaria "comer" uns 60 km da JMT e 3 passos (Mather, Pinchot e Glen), além de uma parte considerável do Parque Nacional Kings Canyon. Mas não havia muita coisa a fazer diante de um incêndio dentro de um vale, exatamente no meio do caminho. Conformados com o destino, começamos a longa subida em direção ao Passo Bishop. À medida que subíamos, íamos encontrando o pessoal do National Park Service que faz a manutenção das trilhas e que confirmavam a gravidade do incêndio. O que era desnecessário, pois a fumaça não só encobria o vale lá embaixo, como era visível acima das altas montanhas a nossa direita. Estar na natureza é aceitar e respeitar suas regras e leis. Só me restava ver o lado positivo dessa situação: perdi a oportunidade de conhecer 3 passos da JMT, mas conheci outros dois tão altos quanto. Além disso, conhecer o Passo Kearsarge, caminho que usaríamos para voltar à JMT, serviu para descobrir uma ótima opção de reabastecimento: em vez de partir do VVR carregado de comida para ir até o final da JMT, longos 196 km, é preferível partir com comida suficiente para chegar à bifurcação com a Trilha do Passo Kearsarge (Kearsarge Pass Trail), a apenas 143 km ou uns 7 dias do VVR. Deste ponto, apenas 11 quilômetros nos separam do asfalto na outra extremidade dessa trilha quase plana e com um insignificante ganho vertical. Com sorte, é possível chegar até a cidade de Independence, comprar comida verdadeira e estar de volta ao início da trilha (trailhead), no final do asfalto, no mesmo dia.

De volta ao Passo Bishop: quando alcançamos esse passo, encontramos um senhor de idade avançada, mas com a vitalidade de quem passou a vida toda andando por aquelas montanhas. Um verdadeiro cabrito montês, transbordando experiência e conhecimento em cada palavra, demonstrando conhecer cada canto daquelas montanhas. São daquelas pessoas que temos o maior prazer de encontrar numa curva do caminho. Com sua pequena mochila de cintura, subiu até um dos mais altos passos daquelas montanhas (3.650 m) só para fazer um simples passeio diário. A trilha continua, já no lado oriental do passo, primeiro por uma série de zig-zags e depois através de uma região repleta de lagos alpinos, muitos deles com as margens arborizadas, e que merecem uma visita por si só. Mas o caminho até o asfalto é longo. Depois de muito zigzaguear, chegamos ao estacionamento e encontramos o Tarik, libanês, que conhecemos na bifurcação da JMT com a Trilha do Passo Bishop, no dia anterior, e que também retornava por causa do incêndio. Providencial encontro, pois ganhamos uma carona até a cidade de Bishop, onde pretendíamos passar a noite. O pernoite nessa cidade acabou sendo uma boa oportunidade proporcionada pelo destino para reverenciar a memória do grande fotógrafo de natureza Galen Rowell, recém falecido e que vivia em Bishop. Grande mestre e inspiração para todos os que gostam de retratar a natureza com uma câmera fotográfica, o mundo sentirá falta das fotos que ele ainda ia tirar. Mas, como escreveu um brasileiro na lista de condolências à disposição no site criado por esse grande fotógrafo, as fotos do céu certamente ficarão mais bonitas a partir de agora.

Na manhã seguinte (28/08), pegamos um ônibus em direção à cidade de Independence. Um detalhe importante a ser considerado no planejamento, é que esse ônibus é o único a ligar todas as cidades da região (Owen Valley). Inclusive Lone Pine, ponto de partida ou ponto final para quem percorre a JMT, e a cidade de Ridgecrest, onde é possível pegar um outro ônibus para cidades como Los Angeles e São Francisco. O problema é que ele só roda às segundas, quartas e sextas, em duas viagens por dia: ida e volta. E eu sabia que terminaria a trilha num dia diferente do horário desse ônibus. Só que esse era um problema para ser resolvido quando eu terminasse a trilha. Até lá, ainda tinha muitos quilômetros a percorrer. Em Independence, compramos algumas coisas no mercado, e logo depois conseguimos uma carona até o início da Trilha do Passo Kearsarge. Percorrendo uma subida rápida e sem nada de excepcional, em pouco tempo já estávamos no alto do passo (3.300 m), observando a tempestade que se formava exatamente na direção para onde iríamos. Indo em direção à JMT em meio a uns poucos grãos de granizo que conseguiam chegar ao chão, fui percebendo a praticidade da utilização desse caminho para reabastecimento, pois todo o trecho entre o Passo Kearsarge e a JMT permanece praticamente na mesma curva de nível, só começando a descer já quase perto da bifurcação. Mais tranqüilo, impossível. E foi nesse Passo que surgiu, meio por acaso, a idéia de fazer uma adaptação da música Blowing in the Wind, do grande Bob Dylan, para os detalhes marcantes dessa linda trilha que é a JMT. Os dois primeiros versos saíram num estalo, sem pensar:

How many switchbacks must a man ascend, before you call him a hiker? How many creeks must a woman cross, before she sleeps in the meadows?

Mas naquele momento, com o céu dando a impressão de que ia desabar a qualquer momento, só conseguíamos pensar em sair o mais rápido possível daquele descampado, verdadeiro imã para os raios que já caíam em algumas montanhas ao redor. De volta à JMT, Matt e eu apressávamos o passo encosta abaixo em direção à proteção proporcionada pelas árvores do Vidette Meadow. Local esse banhado pelas águas do Riacho Bubbs (Bubbs Creek), que nasce dos lagos aos pés da encosta norte do mais alto de todos os passos: Passo Forester. E foi ali, no meio daquele aconchegante vale, que encontramos o James e o Eric, a dupla que conhecemos no VVR. A partir daquele momento, formaríamos um único grupo até o fim da trilha. Passado a surpresa do encontro e feitos os cumprimentos, nos apressamos a armar as barracas antes que o temporal desabasse sobre nossas cabeças. E foi só acabar de montar o acampamento para a chuva simplesmente... parar de vez! Daí em diante, o céu se abriu e as estrelas voltaram a brilhar por entre a copa dos pinheiros, nessa noite que seria marcada pelo 2º encontro com um urso. Logo depois do jantar, eu e o Matt estávamos ocupados com os novos versos para a readaptação da música do Bob Dylan, quando o Eric e o James deram o sinal. Um urso se aproximara do acampamento, atraído pelo cheiro da comida. Imediatamente fomos ajudar os dois a espantar o urso, tendo visto só o vulto negro correndo em direção às árvores e sumir. Um contato totalmente diferente do primeiro, e que só serve para constar. Nada de especial.

No dia seguinte, partimos rio acima, através do longo vale do Riacho Bubbs. Aos poucos, as árvores vão desaparecendo para, enfim, se voltar à nudez das regiões mais altas. Lago após lago, o caminho vai serpenteando por entre colinas até que, após contornar uma pequena elevação, chega-se à encosta final: uma íngreme e enorme parede, na forma de uma afiada crista, através da qual é possível ver, no meio de tantas rochas, a trilha subindo em inúmeros zig-zags em direção a um corte no meio da aresta. Quando se caminha em direção a um passo que não se vê, tem-se uma sensação de ansiedade por não saber o que ainda falta andar. Mas, por outro lado, quando é possível ver o destino daquela subida interminável, tem-se a angustiosa sensação de se andar sem sair do lugar. Isto se deve à dimensão do lugar. Tudo é muito grande e muito longe. A única solução é parar de olhar para cima e se preocupar apenas com a trilha logo à sua frente. Com isso, quando menos se espera, a gente chega ao ponto em que a trilha pára de subir e começa a descer. Estamos no passo!

E como foi bom atingir aquele, o Passo Forester, a 4.023 metros de altitude. O mais alto de toda a Trilha John Muir, exatamente na divisa entre os Parques Nacionais Kings Canyon e das Sequóias. Nesse momento eu tive a confirmação do acerto da minha decisão de fazer a trilha no sentido norte-sul. Ganhando altitude aos poucos, realizei um ótimo processo de aclimatação que, junto com o ótimo treinamento físico elaborado pelo Carlos Sposito, simplesmente não tive nenhum problema com as pernas e os pulmões. A única coisa que ficou a desejar foi a "comida" (liofilizada) usada na segunda parte, totalmente ineficaz. No final, era possível perceber o quanto meu corpo sentia falta de nutrientes, de energia... enfim, de comida. E essa falta provocava um cansaço que não era localizado, aqui ou ali, aquele tipo de cansaço que impede qualquer passo a mais. Não... era um cansaço diferente, como se o meu Ser estivesse exaurido. Era um cansaço ontológico. E nesse momento, eu sentia que o meu corpo, por total ausência do que digerir, começava a se comer. Eu sentia que eu estava me consumindo, queimando qualquer coisa para transformar em energia. Mas todo esse cansaço no corpo e na alma não era suficiente para tirar o prazer por estar ali, quase no final da trilha, a apenas dois dias para fechar, com chave de ouro, uma idéia que começou 3 anos atrás. Só isso já era suficiente para superar qualquer tipo de esgotamento. É a energia da vontade e da determinação, que se obtém não do estômago, mas da mente; e que nos empurra para frente, em direção daquilo que REALMENTE nos é importante.

Sentado ali em cima, naquele pequeno platô a mais de 4.000 metros de altitude, olhava lá p'ra baixo e admirava aquele mundo inóspito a meus pés. Que lugar fantástico! Que montanhas cruamente belas! Como o mundo é belo, meu Deus!! Como eu gostaria que o tempo parasse por umas horas, só para estender esse breve momento. Mas o tempo não pára! Enquanto estávamos ali, comendo e conversando, chega o Guarda-Parque Paul Larsen – que, como todos os Guarda-Parques que eu tinha encontrado pelo caminho, tinha cara de tudo, menos de Guarda-Parque – de quem recebemos duas informações, uma importante, e a outra, estimulante. A primeira era a confirmação do fechamento de parte da JMT por causa do incêndio no Deer Meadow. Apesar do lado trágico da notícia, serviu para acabar de vez com qualquer frustração por termos sido obrigados a sair da trilha. A segunda determinou todo o final da caminhada. Existia, sim, a possibilidade de dormir no abrigo que existe no alto do Monte Whitney.

Com essa idéia na cabeça, começamos a descer o lado sul do Passo Forester, praticamente todo aberto com dinamite, em direção ao Riacho Wright, onde decidimos dormir. No caminho, cruzamos o Platô Bighorn (Bighorn Plateau), de onde tivemos nossa primeira visão da imensa face oeste do ponto mais alto dos EUA, fora do Alasca. Era ali que estaríamos na noite do dia seguinte. Assim, ao amanhecer o dia 30 de agosto, meu 17º dia na JMT, começamos nossa caminhada de 12 quilômetros até o Lago Guitar, aos pés do Whitney. Foi uma caminhada tranqüila e sem pressa; como era o último dia, nada mais nos importava a não ser chegar no lago, tirar o resto do dia para descansar, conversar e comer. Para fechar esse dia em alto estilo, Eric e James pescaram quatro peixes no Lago Guitar e que foram deliciosamente devorados. E foi jogando conversa fora, nesse dia, que eu comentei do meu saco de frutas secas esquecidas sobre uma pedra, antes do Sunrise High Camp, ainda no 2º dia de caminhada, e que certamente serviu de banquete para algum animal. No que o Matt vira e fala que encontrou esse saco, dele se servindo fartamente. Felizmente, esse esquecimento não foi um desperdício, como antes tinha pensado e lamentado.

Finalmente, às 9 da noite, deixamos a margem do lago e começamos a tão esperada subida. Olhando para a face oeste do Monte Whitney, este se transforma, à direita, em uma longa e íngreme muralha cumeada por uma crista, que se afasta do cume em direção ao sul. Nessa mesma direção, acompanhando a base da parede, a trilha parte do Lago Guitar para, algumas centenas de metros depois, começar a atacá-la em inúmeros zig-zags; ao final dos quais, já próximo à crista, chega-se a uma bifurcação: a JMT continua à esquerda em direção ao cume, enquanto a trilha da direita atravessa a crista para, logo depois, começar a descida em direção ao Whitney Portal. Caminhando por um mundo vertical, em completa escuridão, a luz da lanterna de cabeça iluminava só o lugar onde pisar; mesmo assim, era possível sentir a grandiosidade do lugar que nos envolvia. Essa sensação foi ainda mais intensa um pouco antes da bifurcação, onde a trilha, aberta com dinamite, formava passagens que pareciam penduradas no vazio. De noite então, a sensação era inquietante... e maravilhosa. Um rápido descanso na bifurcação, o suficiente para recuperarmos a respiração e colocarmos algumas roupas de frio (pois o termômetro estava abaixo de zero), e retomamos a caminhada em direção ao cume, com a JMT vagueando ao longo da face oeste da crista; esta, na realidade, é formada por uma série de agulhas, entremeadas com abismos enormes, através dos quais era possível ver as luzes de Lone Pine lá embaixo, no vale a leste da Sierra. Em pouco tempo, a trilha começou a perambular por um enorme platô entulhado de rochas e, à medida em que a inclinação do terreno diminuía, foi possível visualizar, contra o fundo negro do céu, o vulto do abrigo localizado a poucos metros do cume.

Com a respiração completamente esgotada, dei os últimos passos que faltavam até a casa. A primeira coisa que eu queria era entrar no quente abrigo para recuperar a respiração e trocar imediatamente minha suada camisa. Naquelas alturas e com aquele frio, ficar com uma camisa úmida em contato com o corpo é pedir para morrer. Feito as duas coisas, saí para ver e sentir o lugar em que estava. E era real: eu estava ali, no cume do Whitney. Não havia excitação, não havia euforia. Pelo contrário: estava totalmente calmo, tomado por uma imensa, íntima e tranqüila felicidade. O típico comportamento de quem consegue o quer, de quem consegue realizar um sonho a muito desejado, mesmo que tenha que esperar 3 anos. Naquela noite, entre os dias 30 e 31, eu era uma das pessoas mais felizes do mundo. Nem mais, nem menos.

O dia seguinte teve seus momentos interessantes, como presenciar um belíssimo nascer do sol; ver as montanhas em volta; tirar as fotos de cume; assinar o Livro de Cume; conseguir, finalmente, depois de 18 dias de tentativas, fotografar uma marmota (logo ali no cume); conhecer o banheiro mais alto dos EUA, com a vista ideal para quem quer pensar no sentido da vida e outras coisas mais. Só que esse era o último dia; dia de, simplesmente, ir embora. Querendo ou não, o cansaço já era total; e a única coisa que eu queria era, simplesmente, chegar ao Whitney Portal, 16 quilômetros lá embaixo, o mais rápido possível. Sendo que os primeiros 3,5 km eram formados por apenas 97 zig-zags.

Pois é... como diz a canção, how many switchbacks must a man ascend (or descend), before you call him a hiker?