Trilha John Muir - Paulo Miranda

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Uma longa trilha pra voltar pra casa

09.09.2002

Depois de 18 dias atravessando um dos cenários mais fantásticos e belos que já vi, estou de volta ao ainda maravilhoso Rio de Janeiro. As saudades eram tão grandes quanto os quilométricos e intermináveis zig-zags que encontrava pela frente, todo o dia e o dia todo, ao longo dos 340 quilômetros da Trilha John Muir. Nesse momento em que estou de volta, o cansaço físico é enorme, quase beirando o esgotamento completo, mas as histórias são inúmeras, as emoções, indescritíveis e o prazer... incomensurável. E para compreender a real dimensão de todas essas emoções e prazeres, só existe uma explicação: the answer my friends, is blowing o’er the pass!

Foram 18 dias de uma rotina quase imutável: acordar em torno das 7 da manhã, tomar café, desmontar acampamento, caminhar das 8 e meia até o entardecer para, então, comer e dormir. E recomeçar tudo de novo no dia seguinte. Mas essa rotina, apesar de cansativa e altamente monótona, como toda rotina deve ser, era entremeada e anulada pelas paisagens que surgiam a cada curva da trilha, pelos animais que cruzavam livremente o caminho, por cada Passo que se atingia e pelas pessoas encontradas, que, algumas vezes, se tornaram belos companheiros de jornada. Eu só tenho a agradecer pela companhia de vocês: Peter e a búlgara Nushi; Alan, the flash; o casal britânico Chris e Ian (valeu pelo chá); Alex; a pequena Rosalie, Guarda-Parque do Ansel Adams Wilderness, com quem partilhei um dos mais agradáveis jantares de toda a trilha; as inesquecíveis iogues Jana e Laurie; o também fotógrafo Greg; Eric e James e sua inseparável camcorder; e Matthew, grande parceiro a partir do VVR até a apoteose final, com a escalada noturna do Whitney. Todos foram essenciais para que a viagem tivesse um sabor especial, para que fosse desse jeito e não daquele. E são todos esses ingredientes juntos – paisagens, imprevistos, surpresas e pessoas – e a forma como são mesclados e vivenciados, que fazem com que uma viagem seja única.

No que diz respeito a minha viagem (em todos os sentidos), só tenho a dizer que tudo, mas absolutamente tudo, valeu a pena e os músculos doloridos. Tudo junto, inclusive os atrasos e desvios forçados, fez com que eu estivesse nos lugares nas horas certas: os quatros dias que levei para percorrer o trecho entre Happy Isles e Tuolumne Meadows, anteriormente previsto para ser feito em dois dias, permitiram que, acampado no Lago Catedral, eu tivesse a minha primeira visão de um Urso em total liberdade; a travessia do Passo Silver sob a lua cheia, nos dando a impressão de estar caminhando na mesma; a subida do Monte Whitney à noite para testemunhar um belo, ventoso e frio nascer do sol... tudo isso não tem preço. Mesmo o fato de ter sido obrigado a sair da trilha por causa de um incêndio, pouco antes do Passo Mather, e retornar 40 milhas mais a frente, não foi e nem é lamentado. Estar na natureza é aceitar e respeitar suas leis e seu tempo. Todos esses são momentos gravados no coração e na alma para sempre; daquelas experiências que valem por si só e por toda uma viagem.

Tudo começou ainda no final da tarde do dia 13 de agosto, quando, acabando de arrumar a mochila, o Shaun chega em casa com a notícia de que Galen Rowell, grande fotógrafo de natureza, e sua mulher Bárbara, tinham falecido num acidente aéreo próximo à cidade onde moravam – Bishop, localizada a leste da Cordilheira por onde eu estaria perambulando durante os próximos dias. Imbuído de esprit d’corp, prometi que faria um minuto de silêncio quando atingisse a parte da trilha que fica perto dessa cidade. O que não poderia imaginar é que, devido a um acidente natural – o incêndio florestal –, eu acabaria sendo obrigado a pegar uma trilha – a do Passo Bishop (Bishop Pass Trail) – e passar exatamente pela cidade desse grande fotógrafo. Acabei esquecendo de fazer o minuto de silêncio, mas a minha visita forçada à cidade de Bishop pode ser considerada como uma forma de reverência proporcionada pelo destino diante de meu esquecimento.

Voltando ao dia 13: às 22:15 estava pegando um Greyhound em direção à cidade de Merced. Tanto na rodoviária quanto dentro do ônibus, tive a impressão de que estava no México e não nos EUA, pois, tirando eu de brasileiro, só via mexicano pra tudo quanto era lado, fora uns poucos chineses e um ou outro americano pobre. Prova sutil de que numa cidade totalmente desprovida de transporte público como Los Angeles, é a posse de um automóvel que determina se você é alguém ou um pária. Depois das instruções de comportamento a serem seguidas dentro do ônibus, expostas de forma "um pouco agressiva" por um motorista visivelmente contrariado por conduzir tantos "párias", partimos para uma viagem que duraria pouco mais de 6 horas. A estrada que liga Los Angeles a Merced, cruza o Vale San Joaquin, celeiro agrícola do estado da Califórnia - o que explica tanto latino se dirigindo pr’aquelas bandas. Esse vale é claramente visível à direita da Sierra Nevada, nesta foto da NASA. Ao amanhecer, estava na cidade de Merced à espera do primeiro ônibus da YARTS, que parte às 7, em direção ao Parque Nacional de Yosemite.

No final da manhã, já estava nesse famoso Parque com meu permit em mãos - extremamente feliz e surpreendentemente calmo. Infelizmente não tive tempo para conhecer direito o Vale Yosemite (Yosemite Valley). Seus famosos monumentos, como os maciços El Captain e Half Dome e a Yosemite Fall (queda d’água que estava completamente seca), só conheci da janela do ônibus pois a data para o início da caminhada era exatamente o dia 14. Assim, depois de tomar meu café por volta das 11 horas da manhã, de enviar alguns cartões-postais (desculpe Flávio&Márcia por ter errado o endereço de vocês!) e de tirar a foto junto à placa que marca o início da JMT, iniciei o que revelaria ser os piores dias de toda a caminhada. Foram praticamente 2 dias subindo e subindo e, pra variar, subindo. A JMT começa em Happy Isles por um caminho pavimentado, em zig-zag (marca registrada da trilha) e muito freqüentado, que leva às quedas d’água Vernal e Nevada. Foi na curva de um desses zig-zags que encontrei um casal que seria companheiro de trilha até Tuolumne Meadows: Peter (do estado de Indiana) e Nushi (búlgara que vive em San Diego, sul da Califórnia). Após descansar no alto da Cachoeira Nevada, onde descobri que meu fogareiro estava entupido, partimos em direção ao Little Yosemite Valley (1.859 m), área de camping onde passaríamos a primeira noite.

Ocupada por altos pinheiros, com várias bear-boxes espalhadas (enormes caixas metálicas para armazenamento de comida), essa área é o "acampamento-base" para quem vai caminhar até o cume do Half Dome: passeio muito recomendado, que fica para uma próxima vez. Durante essa primeira noite de pouco sono no Yosemite (devido a uma revolução estomacal), ouço claramente o barulho de um urso, o que é confirmado, na manhã seguinte, pelas marcas de sua pata a uns cinco metros da barraca. Um pouco eufórico com essa visita noturna, e com o sol custando a atravessar o denso labirinto de pinheiros para espantar o frio dos ossos, começamos a percorrer os 15 quilômetros que nos separavam da área de acampamento Sunrise High Sierra, localizado a 2.830 m de altitude. Num trecho dessa interminável subida, logo após zigzaguear por uma íngreme encosta de quase 400 metros de altura, paramos para descansar, dar graças aos céus por não haver mais nenhuma subida significativa até o acampamento e repor um pouco de energia. Peguei meu saco de frutas secas, o qual acabaria esquecendo ali, em cima da pedra onde estava sentado. Quando senti a falta desse alimento, no dia seguinte, já a caminho de Lago Catedral, lamentei pelo esquecimento. Afinal, era um alimento bastante importante numa trilha que exige muito mais energia do que você consegue carregar. Mas, quase no final da viagem, descobriria que essa perda não foi em vão. Muito pelo contrário...

A caminhada até o Sunrise Camp é o padrão que se repetiria ao longo de toda a viagem: depois de um longo e duro dia de caminhada, sempre se chega a um belíssimo lugar para passar a noite; o que é uma redundância, pois todos os lugares eram belíssimos. Essa área de acampamento, com algumas amenidades como cabanas, bear-boxes, uma espécie de salão/refeitório/bar e banheiros (com um sistema industrializado de processamento do esgoto), localiza-se na margem oeste de uma espécie de "baía", na extremidade sul do longuíssimo Long Meadow. Ali, encontramos Alan, the Flash, que tinha feito o trajeto Happy Isles/Sunrise Camp (22 km) em apenas um dia, no que ele considerou a pior caminhada de toda a sua vida. Não foi difícil imaginar o porquê! E para constatar se o nome do lugar não era em vão, acordei bem cedo na manhã seguinte e procurei um lugar confortável na rochosa encosta por onde se espalhavam as barracas, para ver o nascer do sol. A sensação de ser aquecido até a alma pelo sol que se levanta por trás das montanhas foi tão reconfortante que logo veio a minha mente a canção "here comes the sun" dos Beatles. Para completar essa maravilhosa manhã, só faltava mesmo um quente desjejum... só que o meu fogareiro ainda estava um pouco entupido, apesar da limpeza lá no Little Yosemite Valley. Se não conseguisse limpá-lo, seria obrigado a comprar outro em Tuolumne Meadows, se quisesse continuar na trilha. Assim, na busca por solucionar esse problema, acabei conhecendo o simpático casal britânico Chris e Ian, que eu voltaria a encontrar dois dias mais tarde, na fila da lanchonete em Tuolumne Meadows, à espera de um suculento cheeseburguer duplo com batatas fritas e Coca-Cola, e alguns dias depois, já no Ansel Adams Wilderness.

No dia seguinte (16/08), iniciamos o nosso terceiro dia de caminhada ao som de Isis, de Bob Dylan, que vinha do refeitório. Que grande começo de dia, cujo objetivo, enquanto ia passando pelas sombras de fantásticas e fraturadas montanhas como o Columbia Finger, Tressider Peak e Pico Echo, era chegar ao Tuolumne Meadows, às margens da Highway 120, depois de uma caminhada de 16 quilômetros. Mas, na impossibilidade de obter, antes do inicio da caminhada, qualquer informação sobre temperatura e neve ao longo da JMT, acabei colocando na mochila roupas de frio e a pesada bota de caminhada, o que, somando ao peso da comida para oito dias, acabou me proporcionando uma dor no ombro esquerdo que iria me incomodar até o último dia. Assim, na esperança de poupá-lo um pouco, aceitei o convite do Peter e da Nushi para dormir no Lago Catedral superior (2.883 m), apenas 9 quilômetros depois do Sunrise Camp. Como há males (literalmente nesse caso) que vem para o bem, esse foi um atraso abençoado. Pois foi exatamente às margens desse lago formado pelo degelo da neve na primavera, que no mesmo dia, às 8 e meia da noite, eu vi um Urso (black bear) pela primeira vez na vida. Com outras barracas espalhadas junto ao lago, estávamos nós três sob as estrelas, na conversa pós-jantar, quando ouvimos o grito: A BEAR! Por instinto de preservação da espécie, corremos para a proteção psicológica de nossas respectivas e frágeis barracas. Mas como a curiosidade é outro instinto básico do ser-humano, fiquei olhando para fora na esperança de ter alguma visão desse ser mítico na pele de animal. O que não tardou nem 2 minutos, quando o vulto dele passou ao longo da margem do lago, a apenas 10 metros da barraca. É como se o tempo tivesse parado e, surpreendentemente desprovido de qualquer sensação de medo ou pânico, fiquei admirando toda a sua grandeza e majestade. Com a lanterna de cabeça ligada e apontando em sua direção, os olhos dele brilharam no meio da noite. Por um átimo de segundo, foi olho-no-olho... simplesmente inesquecível. Mas também o suficiente para lembrar que não é de bom tom irritar um animal que corre mais de 60 km/h, é muito mais forte e sobe árvore com muito mais desenvoltura do que um ser-humano. Desliguei a lanterna e me contentei em acompanhar sua sombra que sumia por entre as árvores. Depois disso, só nos restava nos recolher às nossas barracas e dormir com essa maravilhosa lembrança ainda fresca na memória.

O amanhecer do dia 17 seguiu a rotina de todos os dias, e às 8 e meia já estávamos descendo em direção a Tuolumne Meadows, ponto final da viagem de Peter e de Nushi, e a 310 km do meu destino. A trilha a partir do Lago Catedral contorna as encostas ocidentais varridas por deslizamentos de rochas do Pico Catedral (3.334 m), cujo cume mais parece uma faca serrilhada, para, 3 horas depois, chegar às facilidades oferecidas pela civilização: correios, mercado, loja de material esportivo e lanchonete. Eu não lembro de nenhum dia na minha vida em que eu tenha visto uma junkie-food como um presente dos deuses. Que cheesebúrguer duplo!! Que batata-frita!!! Fiquei tão desconcertado com essa visão divina na minha frente, em cima da mesa, que acabei perdendo a hora dos correios, que fechou ao meio-dia. Pretendia mandar a roupa de frio e a bota de volta para casa pois, ao longo da trilha fui encontrando pessoas que estavam terminando a JMT (sentido sul-norte), e com elas obtido as informações que tanto ansiava: frio razoável e nenhuma neve. Com o correio fechado, Peter se ofereceu para levar as minhas coisas e despachá-las de San Diego para Los Angeles, proposta que foi aceita sem discussão. Só que, no meio das coisas, acabei entregando (não me perguntem por quê. Por favor!) os cinco filmes que já tinha batido até então. Resultado: no domingo (1º de setembro), após terminar a JMT, fico sabendo por telefone que eles só postaram toda a tralha na segunda, dia 26/08, exatamente uma semana antes de eu pegar meu avião de volta para o Brasil. Como até o dia 2 de setembro a caixa ainda não tinha chegado em Los Angeles (a apenas 2 horas de carro de San Diego), embarquei para o Brasil com os nervos na estratosfera diante da possibilidade de extravio desses filmes (o resto do equipamento perdeu completamente todo o seu valor). Felizmente, no dia em que eu pisei em solo brasileiro, recebo um e-mail do Shaun dizendo que ele tinha acabado de receber a caixa pelo correio (com meus filmes!!!!) e que estaria remetendo-a para mim no dia seguinte, numa forma nem muito lenta (porém mais barato), nem muito cara (porém super rápido). Pelos cálculos dos correios, e se Deus quiser, estarei recebendo minhas coisas nessa semana. Isso explica por que as fotos apresentadas no site nesse momento, são pós-Tuolumne Meadows.

Bom... visando dar mais um pouco de descanso ao meu ombro esquerdo, resolvi dormir em Tuolumne Meadows, quando fizemos uma bela fogueira no acampamento para aquecer aquela noite de estômago devidamente preenchido e plenamente satisfeito com dois cheesebúrgueres duplo e um monte de batatas-fritas. No dia seguinte, estaria partindo bem cedo em direção ao Lyell Canyon e Passo Donohue, na tentativa de correr atrás do atraso acumulado.