Você está em território de ursos!
05.08.2002
Ursos: a minha grande preocupação em toda a viagem. Simplesmente porque não tenho a menor ideia de como lidar com esse animal na prática. Tudo o que sei é de teoria: textos e artigos que li na preparação da caminhada e que só serviram para acentuar a distância colossal entre esse dois conceitos. Mas, como a vontade de percorrer a John Muir é enorme e todos os relatos apontam para uma quase inexistência de encontros trágicos entre seres humanos e ursos, resolvi não me deixar amedrontar com a possibilidade de ver um Urso Preto (Ursus americanus), o típico urso da Sierra Nevada. Sinceramente, lá no fundo, até anseio por uma visão desse animal, momento este que certamente será um misto de apreensão e admiração. Concordo que um Urso Preto não é nenhum urso do tipo grizzly, encontrado bem mais ao norte, muito menos um majestoso Urso Branco do Ártico. Mas, ainda sim, é um urso e impõe respeito. Anseio por essa visão pelo simples fato de nunca ter visto, nem mesmo em zoológico, um exemplar que fosse desse animal mítico, com presença constante em lendas e mitologias, canções e desenhos animados: quem nunca riu das aventuras do mais famoso de todos eles, o Zé Colméia?
Lendo as informações disponíveis nos sites dos Parques e Florestas Nacionais norte-americanos sobre os ursos, vejo que o caso é realmente sério. O turista ou caminhante que tem sua comida roubada por um urso, pode ser multado pela imprudência ou pelo descaso. Ou pela ignorância, não importa. Na impossibilidade do Parque multar o urso, multa-se o turista que ficou sem comida. Simplesmente, tudo o que tem odor deve ser protegido; de biscoito a protetor solar, de chocolate a pasta de dente, pois os ursos têm um olfato fantástico, que os fazem capazes de sentir o cheiro de uma distância considerável. A seção sobre ursos no site do Parque Nacional do Yosemite dá uma boa noção dessa problemática.
Como lidar com a questão? Nas áreas de camping de fácil acesso e em algumas no interior dos Parques (backcountry), foram instaladas caixas metálicas à prova de urso, as bear-boxes. Só que, como foi dito, essas caixas estão localizadas em lugares específicos, a maior parte nas áreas de camping organizado. Mas... e quem vai fazer a John Muir, que atravessa o coração da Sierra Nevada, cortando uma seqüência de Reservas utilizadas exatamente para a recuperação e proteção do Ursus Americanus? Ao longo dessa trilha, as poucas caixas só são encontradas entre os quilômetros 266 e 321 (sentido norte-sul) no Parque Nacional Sequóia-Kings Canyon, cujo site possui uma página - Bears and Food Storage muito interessante sobre os cuidados com a comida.
No caso de ir para o interior remoto dos Parques, além das caixas de metal, existem outros três métodos que têm suas vantagens e desvantagens. O primeiro é pendurar a comida em um galho de árvore bem alto e suficientemente distante do tronco, através de uma técnica conhecida como bear-bagging (ou counter-balance). Essa técnica não só obriga o caminhante a dormir somente onde tem árvores, como também parece que não tem sido obstáculo para os ursos, ótimos escaladores das mesmas. E bastante inteligentes, também! Por isso mesmo, essa técnica é bastante desencorajada pelos Guarda-Parques. O segundo método dá ao caminhante uma liberdade muito maior, podendo dormir onde bem quiser: é o uso de uma lata à prova de urso, conhecida como bearproof-canister ou, simplesmente, bear-can. As desvantagens são duas: uma é o limite de sua capacidade , pois cabe, em média, comida para seis dias. Eu consegui um texto que explica como maximizar essa capacidade, escolhendo determinado tipo de comida e substituindo a embalagem original, normalmente muito volumosa, por sacos plásticos, bem mais leves e flexíveis. A outra desvantagem é o peso, aumentando em 1,1 kg a carga da mochila. O último método, proposto por Ray Jardine (inventor do equipamento de segurança de escalada conhecido como friend) é chamado de stealth camping, algo como camping furtivo ou secreto. Como os ursos, em sua busca constante por comida, acabam se concentrando em volta dos acampamentos pré-estabelecidos, que são sempre próximos a uma fonte d’água, como lagos e rios, Jardine sugere nunca dormir onde se faz comida para não impregnar esse local com o cheiro e, com isso, não atrair a atenção do urso. Uma ou duas horas antes de encerrar a caminhada do dia, deve-se parar próximo a uma fonte de água para comer. Depois, com tudo limpo e arrumado, continua-se a caminhar por um tempo até que, num determinado ponto, furtivamente abandona-se a trilha em busca de um lugar tranqüilo e isolado. É só chegar, armar a barraca e dormir.
Como eu não desprezo a minha total e absoluta falta de prática na relação com ursos, assim como não quero perder minha liberdade de poder escolher qualquer lugar para dormir, decidi pelo segundo método: o da lata ou bear-can. Apesar da limitação de espaço e do peso extra, essa escolha possibilita a liberdade e o isolamento, o que acho fundamental para quem vai para as montanhas. Usando a lata e seguindo o método furtivo, posso escolher qualquer lugar longe da aglomeração das áreas oficiais de camping quando desejar uma ou mais noites de isolamento. Assim, orgulhoso desse raciocínio teórico brilhantemente estruturado a quilômetros de distância da problemática em questão, e a preocupação com o Ursus americanus nem um pouco amenizada com isso, encomendei minha bear-can na Sierra Wilderness, um site de divulgação da Sierra Nevada (nota do autor: site fora do ar em 2007). Do mesmo jeito que a barraca e os filmes fotográficos (slides encomendados de uma loja em Nova York, estupidamente mais baratos do que no Brasil), a lata foi enviada para a casa do Shaun, meu acampamento-base nos EUA. E como profundo agradecimento a um americano que, além de estar dando a maior força, é loucamente apaixonado pelo futebol, estou levando, dentre outras coisas, uma bela e mística camiseta oficial da seleção, já com a quinta estrela bordada. Simplesmente... maravilhosa!!!